(A Cuarta Parede, 15 de outubro de 2013)

"Mudar de Imagem / Imagens de Mudança"

Em Changer d’image (1982), filme de reflexão de Jean-Luc Godard sobre a sua passagem por Moçambique
como assessor do governo de Samora Machel no processo de criação da televisão pública do país (1), interrogava-se
o realizador: “Nem sequer sabemos se pode existir uma imagem da mudança. Está a imagem qualificada par
expressar a mudança? E pode a imagem fazer mudar?” (2)

Na premissa de Godard, estão contidas duas características fundamentais da imagem cinematográfica: por um lado,
e desde logo, a capacidade de prefigurar (o «cinema prospectivo» de Dominique Noguez) e expressar o acontecimento
político, o que assenta evidentemente numa relação de dependência (ou de interdependência, invocando o pensamento
de Amílcar Cabral) entre as formas de expressão cultural e a infraestrutura económica; por outro lado, a sua performatividade,
isto é, a capacidade de espoletar acontecimentos e assim provocar a mudança. Entre estes dois princípios, movemo-nos
num território incerto, que inclui as principais problemáticas do cinema político, como a permanente oscilação entre
a forma e a função da imagem.

Tais questões estão presentes de forma premente em Vida Extra (2013) de Ramiro Ledo Cordeiro. O filme
apoia-se e é construídoa partir de um desdobramento de registos, ou melhor, de leituras: Vida Extra lê a crise
europeia a partir de uma leitura d’A Estética da Resistência (1975-1981) de Peter Weiss, monumental fresco literário
que, por sua vez, constitui uma leitura da ascensão e queda da esquerda europeia na década de 30. A narração
parte, portanto, de uma narrativa preexistente, não ocultando, porém, o objecto original. Pelo contrário, Vida Extra
desvela o texto de origem, inscrevendo-se, por conseguinte, numa genealogia de filmes de que constam, por exemplo,
Gestos e Fragmentos. Ensaio sobre os Militares e o Poder (1982) de Alberto Seixas Santos ou Operai, Contadini (2001)
de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, entre tantos (e tão poucos) outros. Vida Extra assume-se inteiramente enquanto
representação, ou melhor, enquanto meta-representação das formas históricas - literárias e cinematográficas - de figuração
da luta de classes.  Neste sentido, o filme de Ledo Cordeiro propõe uma leitura materialista da história do cinema
- já ensaiada em O Processo de Artaud (2010) -, alicerçada quer na existência e na circulação de palavras e de imagens
resistentes, quer numa redefinição da ideia e da praxis de comunidade política.

A Estética da Resistência reconstrói a história colectiva da resistência anti-fascista desde a República
de Weimar até 1945, apresentando, ao mesmo tempo, uma leitura das formas estéticas modernistas. O termo
«investigação artística» (künstlerische Forschung) é utilizado por Weiss no romance; por outro lado, há referências
a Bertold Brecht, a Sergei Tretjakov e ao construtivismo russo. Weiss interliga de modo indestrinçável a luta de
emancipação política e a experiência estética, concepção próxima daquela que informa hoje o pensamento de Jacques Rancière.

Em Vida Extra, filme sobre as formas de representação da luta de classes e não sobre a luta de classes em si mesma,
Ledo Cordeiro mostra-nos permanentemente a instância enunciativa: primeiro, a fonte de autoridade que emana do
texto de Weiss; depois, num movimento auto-reflexivo, o processo e os meandros de construção do filme. Na sequência
inicial, na primeira parte, quando as temporalidades em jogo, frente à quase completa unidade espacial, nos são apresentadas,
há algo de artesanal e de, ao mesmo tempo, profundamente modernista na forma auto-reflexiva e auto-suficiente com que
os factos históricos são levados à imagem. No procedimento flusseriano de fazer derivar significantes visuais de significantes
verbais, há outra grande referência que vem à baila: Robert Kramer, particularmente os filmes de reflexão meta-cinematográfica
do cineasta norte-americano, como Dear Doc (1990), por exemplo.
           

Em suma, e para dizê-lo de forma muito breve, Vida Extra é um filme que inquire formalmente sobre as formas estéticas
do cinema político contemporâneo. É certo que são múltiplas as temporalidades convocadas, é certo também que o filme
se imbrica num vasto e intricado tecido intertextual, mas o que está aqui em jogo não é simplesmente uma actualização
das formas fílmicas políticas no presente, mas, fundamentalmente, a invenção de novas formas, fazendo do presente a
força inaugural de uma história por vir. Se, para Serge Daney, o presente constitui, essencialmente, uma forma de
não-reconciliação, Vida Extra é exemplo de um cinema do presente e feito no presente. Malgrado a sua abertura temporal,
o campo histórico convocado remete mais bem a uma
«contemporaneidade do não-contemporâneo», noção operativa de Reinhart Koselleck cujo pensamento tão bem parece
adequar-se à concepção temporal que do filme resulta.
           

Vida Extra apresenta-se como um tríptico. Às três partes do filme, é comum o questionamento das formas documentais
de representação do acontecimento político, bem como um repúdio ou um pudor no que respeita ao uso de imagens de
arquivo e, mesmo, uma desconfiança generalizada face à ontologia da imagem cinematográfica. Boris Groys considera
que os arquivos, assim como as ruínas, foram centrais para o tratamento da utopia nos séculos XIX e XX. O arquivo constituiria,
segundo o pensador, a promessa utópica que permitiria aos sujeitos contemporâneos escapar à sua contemporaneidade.
Ora, nada há de nostalgia militante no filme de Ledo Cordeiro. Não se trata, pois, de escapar à contemporaneidade, mas,
ao contrário, de trazer ao presente as formas estéticas históricas e de analisá-las e desconstrui-las a partir desse
movimento, fazendo da travessia da história uma operação crítica.
           

O sistema de Ledo Cordeiro funda-se num princípio de disjunção. Disjunção geral entre o espaço e o tempo, por um lado,
e entre a palavra e a imagem, por outro, na sequência da assembleia,  em que a palavra circula na fronteira do háptico
ou da desfiguração, desfiguração que encontramos em alguns filmes de Peter Weiss, como em Studie II (Hallucinater), de
1952. Eis um cinema que ousa inverter as hierarquias, primeiro vem a palavra e só depois a imagem, uma imagem que tende
para a abstracção e que insiste na sua imperfeição. Disjunção ou assincronismo entre a imagem e o som também na terceira
parte do filme, na discussão entre amigos, equivalência formal do “nós” enunciativo do romance de Weiss e materialização
do princípio de circulação da palavra.
           

O cinema de Ledo Cordeiro é também um cinema de fulgurâncias, de reflexos fracos e clarões momentâneos. A noção de
«iconologia dos intervalos» de Aby Warburg, fundada numa coalescência entre a palavra e a imagem, permite-nos traçar as
correspondências visuais e formais de uma constelação de filmes em que a crise europeia é representada. Dessa constelação,
destaca-se a recorrência de imagens de halos de luz, cores afogueadas e claridades dúbias. Assim o é em Vida Extra, nos
pontos luminosos que levam a cabo uma desfiguração da imagem ou que mais bem constituem inscrições do figural no
espaço representativo; assim o é também em Vers Madrid ! The Burning Bright (2013) de Sylvain George ou em Austerity
Measures (2012) de Guillaume Cailleau e Ben Russell.
           

Vida Extra é, portanto, um filme que, mais além do seu rigor formal, volta a introduzir no espaço cinematográfico
contemporâneo certas questões fundamentais que dele pareciam ter sido afastadas. Retomando as interrogações
de Godard com que este artigo foi iniciado, pode a imagem expressar a mudança? E pode a imagem fazer mudar?
A proposta de Ledo Cordeiro parece constituir uma resposta afirmativa à primeira questão e um primeiro ensaio,
entusiástico e vibrante, de resposta à segunda.

 

(1) Godard, Jean-Luc (1979): “Nord contre Sud ou Naissance (de l’Image) d’une Nation 5 films émissions de TV”,
Cahiers du Cinéma 300.

(2) Godard, Jean-Luc en Changer d’image - Lettre à la bien-aimée (1982)

 

Raquel Schefer

artículo publicado en A Cuarta Parede